«Os desafios que a Igreja Católica enfrenta na Etiópia são únicos»
Quinhentos anos depois, o mítico reino do Preste João continua a ser profundamente religioso e devoto. E a fé, qualquer que seja o rito ou a denominação, continua a ser para muitos uma marca de identidade. Mas a Etiópia é também um dos países mais exigentes em termos de sobrevivência, sendo que as mulheres estão entre os mais vulneráveis e desprotegidos. Agora, um sacerdote, numa região de fronteira, quer fomentar condições para dar mais autonomia às mulheres em situação de risco extremo. É o padre Abiyot Desalegn, responsável pela paróquia de Itang, junto à fronteira com o Sudão do Sul, em entrevista a’O CLARIM.
O CLARIM– Concebeu, em plena pandemia, um projecto com vista a garantir mais autonomia a mulheres em situação de grande fragilidade económica, num dos mais duros e desiguais ambientes do continente africano – a região de fronteira que separa a Etiópia do Sudão do Sul. Como propõe atingir este objectivo?
PADRE ABIYOT DESALEGN– O número de mulheres pobres nas diversas aldeias que compõem a paróquia de Itang é bastante significativo em termos quantitativos. Organizamos com alguma frequência visitas pastorais por estas nove aldeias e durante essas visitas cruzamo-nos, com regularidade, com mulheres com grande debilidade em termos físicos, muitas das quais visivelmente doentes. Muitas sofrem com a malária por não terem acesso aos nutrientes que as ajudam a resistir à doença. Os níveis de imunidade são muito baixo. São pessoas que necessitam e merecem ser apoiadas, na medida em que todos merecem viver melhor, viver com dignidade. No entanto, é difícil fazer-lhes chegar apoio e assistência todos os anos. E, por isso, em vez de importunarmos os nossos dadores todos os anos para lhes comprar comida, convencemo-nos de que o melhor seria adoptar um novo método para as ajudar e foi aí que surgiu a ideia de financiar a criação de animais. É algo com o qual podem assegurar o seu próprio sustento, ao mesmo tempo que se sentem empoderadas. Com isto, esperamos que possam depender apenas de si próprias. Esperamos que este projecto ajude a minimizar muitos dos problemas com que se deparam tanto os benfeitores, como os beneficiários, e possa dar resposta às necessidades com que estas mulheres se deparam.
CL– O objectivo passa também por fomentar a igualdade de oportunidades em termos de educação e de acesso ao emprego e aos meios de produção, ao permitir que as beneficiárias criem os seus próprios negócios. Quem são os principais alvos deste projecto?
P.A.D.– Nunca como hoje houve um tão grande número de mulheres a frequentar a escola. No entanto, apesar dos avanços, as mulheres e as mais jovens continuam a enfrentar múltiplos obstáculos que têm por base o género e que se cruzam com outros factores, como a idade, a etnia, a pobreza ou a deficiência. Isto prejudica-as no acesso, em igualdade de circunstâncias, a uma educação de qualidade. Há obstáculos a todos os níveis, no acesso a educação de qualidade, mas também na forma como os próprios sistemas educativos estão estruturados. Isto é algo que se reflecte nas instituições de ensino e nas próprias salas de aula, onde abundam estereótipos de género. Em África, questões como o casamento infantil, as gravidezes precoces e indesejadas, e a violência de género contra mulheres e jovens são ainda problemas recorrentes, bem como a inexistência de escolas inclusivas, que possam garantir ambientes pedagógicos de qualidade. Grande parte das infraestruturas educativas são inadequadas e inseguras, não têm sequer instalações sanitárias e quem mais sofre com isto são as alunas.
CL– Que tipo de actividades económicas tenciona promover com este projecto?
P.A.D.– O objectivo passa, sobretudo, por criar oportunidades económicas que lhes facultem a possibilidade de desenvolver uma actividade que viabilize a geração de receitas. O projecto é norteado por uma série de premissas. Desde logo, depende da possibilidade de assegurar os recursos necessários para que a actividade se inicie. A pessoa ou os grupos visados pelo projecto têm de ser capazes de providenciar os recursos humanos necessários. Por outro lado, é fundamental que haja um mercado estável, que haja procura para os bens produzidos ou para os serviços prestados. Só assim a actividade tem hipóteses razoáveis de se tornar viável e sustentável, dado um certo período de tempo.
CL– O projecto já foi formalmente lançado. Os primeiros resultados são promissores?
P.A.D.– As mulheres que vão beneficiar deste projecto são, sobretudo, mulheres que não têm condições para trabalhar na agricultura e não têm ninguém que as apoie. Refiro-me a viúvas e a pessoas que padecem de problemas de saúde crónicos. Aquilo de que me apercebi é que estas mulheres estão hoje mais felizes, mais confiantes em termos psicológicos. Muitas delas começaram a comer ovos e a vender os ovos das galinhas que produzem. Algumas já conseguiram adquirir mais galinhas. Houve uma mudança muito significativa.
CL– Mudando de assunto… Portugal é um dos mais antigos parceiros da Etiópia. Recentemente, os dois países celebraram os 500 anos de relações diplomáticas entre as duas nações. Há cinco séculos a perspectiva de descobrir um reino cristão por detrás das linhas muçulmanas levou os portugueses ao coração de África. Cinco séculos depois, que importância tem a Cristandade na Etiópia? Ainda é uma marca da identidade nacional?
P.A.D.– É, de uma forma geral, vista como a religião tradicional do País e é um aspecto que está intimamente ligado com a identidade nacional. Sobretudo para muitos dos membros da Igreja Ortodoxa Etíope, a fé é muito importante na vivência do quotidiano. Eu diria que é parte da própria identidade pessoal de quem a professa.
CL– E a Igreja Católica? Que tipo de desafios enfrenta a Igreja Católica na Etiópia?
P.A.D.– Os desafios que a Igreja Católica enfrenta na Etiópia são, em grande medida, únicos, começando desde logo pela geografia. A Etiópia é um país enorme que parece ainda maior por causa da debilidade do sistema rodoviário. São necessários mais de quatro dias para conduzir de uma ponta à outra do País, e esse percurso é exigente e desgastante. Sem veículos potentes de todo-o-terreno, é impossível circular. Por outro lado, os desafios étnicos, tribais e linguísticos são de monta e, como tal, até a comunicação é difícil em algumas regiões do País. A Etiópia faz fronteira com países que sofreram e continuam a sofrer com os horrores da guerra, com a fome, com a injustiça social ou com a opressão política. A própria Etiópia foi palco de grandes fomes e de uma sangrenta guerra com a Eritreia. Muitas famílias foram cruelmente separadas apenas porque estavam do lado errado de uma linha de demarcação. Dezenas de refugiados chegam dos países vizinhos todos os dias, colocando sob pressão a economia local. Há uma grande dependência de organizações internacionais quanto a vestuário, alimentos, água, medicamentos e a outros produtos básicos. A Igreja está profundamente envolvida nestes procedimentos, através de parcerias com estas agências, ajudando a trazer algum alívio a um grande número de pessoas que pouco ou nada têm. A Etiópia tem também uma mistura interessante de ritos. Muitas das dioceses são latinas, conhecidas como vicariatos apostólicos. As outras dioceses são parte do rito católico Ge’ez, que pertence à Igreja Oriental e são chamadas de eparquias. Muitos dos bispos de um dos ritos cresceram sob os preceitos do rito oposto. Mas, na generalidade, isto não coloca grandes problemas. Muitos dos bispos e dos próprios sacerdotes em muitas das regiões do País sentem-se confortáveis para celebrar a liturgia em qualquer dos ritos.
CL– Há um conflito ainda por sanar na região de Tigray, que tem sido afectada por uma enorme instabilidade. Os ecos desta guerra fazem-se sentir na paróquia de Itang?
P.A.D.– O conflito entre as forças governamentais e as forças rebeldes na região de Tigray, no Norte do País, mergulhou a Etiópia numa situação de tumulto. Os combates já se prolongam desde Novembro e já causaram centenas de mortos. Na origem dos combates está uma luta pelo poder, as eleições e a percepção de que são necessárias reformas políticas. A crise estendeu-se a toda a Etiópia. A vida em Itang encareceu e houve deslocações massivas de população: há refugiados das tribos de montanha, Anyuak, Nuer. Os ecos do conflito não se fazem sentir apenas em Itang. A verdade é que a guerra nunca terminou verdadeiramente; sempre houve guerra! Na região de Itang, por exemplo, nunca houve paz entre estas duas tribos, os Anyuak e os Nuer. Mesmo para pessoas que propõem servir, como nós, na Igreja, as perspectivas são difíceis. A meu ver, é necessário reforçar o diálogo e os processos de edificação da Paz.
CL– A perseguição religiosa é um problema na Etiópia? Há católicos a serem perseguidos no País?
P.A.D.– Na Etiópia, este aspecto da perseguição depende, em grande medida, do tipo de Cristianismo que se professa ou onde se vive. Uma vez que o Governo mantém uma relação especial com a Igreja Ortodoxa Etíope, outras denominações – em particular os católicos, os evangélicos e os protestantes pentecostais – são perseguidas tanto pelo Estado, como pela Igreja Ortodoxa. As pessoas que abandonam a Igreja Ortodoxa são alvo de pressões por parte da própria família e da comunidade, e enfrentam maus-tratos significativos. Se isto não bastasse, as igrejas podem ser impedidas de conduzir celebrações religiosas. Outro grande factor de perseguição na Etiópia é o extremismo islâmico, em particular na parte oriental e na parte meridional do País. Os fiéis que se convertem ao Catolicismo, provenientes do Islão, correm o risco de serem assediados e oprimidos pela família e pelos vizinhos. Em algumas regiões, os cristãos vêm-lhes ser recusado o acesso a recursos comunitários e são alvo de ostracismo e discriminação. Por outro lado, alguns cristãos estão vulneráveis à violência quando extremistas islâmicos atacam igrejas e habitações. As mulheres cristãs correm o risco de serem forçadas a casar com não-cristãos e o que se espera é que assumam a religião do marido. Se uma mulher se converte ao Catolicismo numa área não-cristã, o mais provável é que seja forçada a divorciar-se pelo marido e, muito possivelmente, perde a custódia dos próprios filhos.
CL– Qual o maior desafio com que se depara um sacerdote ao tomar conta do seu “rebanho” numa região de fronteira como Itang?
P.A.D.– Um dos maiores problemas nas aldeias desta região é a falta de instalações que facilitem as tarefas domésticas por parte das mulheres. É doloroso ver mulheres trabalhar dezasseis horas por dia, todos os dias, sem a possibilidade de partilhar a responsabilidade de tomar conta da sua família. O vicariato apostólico de Gambella e a região de Itang estão entre as áreas mais conflituosas – senão mesmo a mais conflituosa – de toda a região. A percepção é que a crise que aqui existe é fruto de um conflito étnico entre os Anyuak e os Nuer. O meu maior desafio, em Itang, é o de me aperceber quando as coisas começam a azar. Os problemas começam muito depressa e não sabemos muito bem onde, nem porquê. Trabalho no total com nove capelas e nove comunidades, sendo que estas não têm água potável, não têm escola, não têm moagens, não têm electricidade, não têm clínicas itinerantes. As pessoas adoecem com malária, não têm alimentos e as crianças não frequentam a escola. A vida é difícil tanto para os locais como para os refugiados. As pessoas pedem-me sempre que lhes ofereça alimentos e bebidas.
CL– Apesar das dificuldades, a Igreja está a crescer na região de Gambella?
P.A.D.– Sim, está a crescer.
CL– Ainda há espaço para a evangelização na Etiópia? Como é que esse processo pode ser conduzido?
P.A.D.– Ainda há muita margem de manobra para a evangelização, há muitos locais onde a Palavra de Deus ainda não chegou. Há muitas pessoas que necessitam da nossa presença, mas sem apoio financeiro é impossível. Pediram-me que abrisse novas capelas católicas em cinco lugares, mas sem apoio é difícil.
Marco Carvalho