Quando a Igreja substitui o Estado
Estamos em São Tomé e Príncipe, em plena gravana, a estação seca, ou mais seca, mas muito quente (para quem não é daqui), com pó. O mar está sempre a perder-se de vista, em contraponto com um céu nesta altura mais azul, mas quase sempre plúmbeo. O “inferno” verde, de clorofila e exuberância vegetal, com um solo rico e fértil, nesta humidade opressiva, domina a paisagem, pontilhada por picos vulcânicos envoltos em bruma. Cacau, café, frutas, árvores tropicais, aqui, onde o equador nos toca, tudo explode em vida, numa terra fecunda mas também num mar generoso e sempre à distância do olhar. Desta vez, vamos falar da presença da Igreja neste jovem arquipélago, independente desde 1975, antes uma colónia portuguesa, de degredo mas de lucro, entreposto de escravos mas também colónia agrícola, onde o café e, principalmente, o cacau foram imperiais, dominando a economia e gerando fortunas… em Lisboa, mas problemas socais e raciais nas ilhas. Mas vamos falar não em discurso histórico apenas, antes através do olhar e da perspectiva do seu prelado, um bispo com larga experiência missionária em África e profundo conhecedor das suas idiossincrasias e singularidades. Com um pensamento crítico fino e rigoroso, estribado em conhecimento e experiência, independência e um amor eclesial de destacar, a partir de uma conversa com que nos brindou, vamos então conhecer esta diocese. E o território, as suas gentes, problemas e identidade.
A Ilha de São Tomé (859 km²) foi descoberta pelos navegadores portugueses João de Santarém e Pêro de Escobar no dia do apóstolo São Tomé (21 de Dezembro), corria o ano de 1470. Alguns dias depois, em viagem de reconhecimento à ilha recém-descoberta, no primeiro dia do ano de 1471, aqueles dois capitães encontraram uma ilha mais pequena, a qual baptizaram Ano Bom. A 17 de Janeiro descobririam outra ilha, a que chamaram de Santo Antão, ou Santo António Abade, hoje denominada de Ilha do Príncipe (142 km² e oito mil habitantes), por ter então pertencido ao príncipe D. João, que veio a ser o rei Dom João II (1455-1495, rei desde 1481), embora o nome seja uma homenagem daquele soberano ao seu único filho, Afonso, Príncipe Real (1475-91).
Já foi uma diocese enorme, esta a de São Tomé e Príncipe (STP), compreendendo Angola, Moçambique e toda a bacia do Golfo da Guiné, até 1842. Foi constituída sui iure a 31 de Janeiro de 1533 pelo Papa Clemente VII por desmembramento da Arquidiocese do Funchal. Com efeito, foi constituída em diocese a 3 de Novembro de 1534, pelo Papa Paulo III, abrangendo então Angola e Moçambique, sendo o seu primeiro bispo D. Diogo de Ortiz de Vilhegas, mais tarde bispo de Ceuta. Em 1924 designou-se por Diocese de São Tomé, sendo renomeada em 1957 na sua denominação actual. Hoje a Diocese abrange o território nacional de São Tomé e Príncipe (o segundo país mais pequeno de África, a seguir às Seychelles), numa área de 1001 km², num total de 180 mil habitantes, dos quais 120 mil católicos, ou seja, aproximadamente 60% da população distribuída por 14 paróquias. Embora o patrono da Diocese seja São Tomé Apóstolo (festa a 21 de Dezembro), o titular da Sé é Nossa Senhora da Graça (comemoração obrigatória a 25 de Março).
D. Manuel António Mendes dos Santos, CMF, é o seu bispo diocesano desde 1 de Dezembro de 2006, fazendo parte da Conferência Episcopal de Angola e São Tomé e Príncipe. Sacerdote claretiano desde 1985, é, de facto, um “veterano” de África. Como ele próprio nos revela, a «Diocese não é extensa territorialmente, mas é plena de desafios, não apenas pastorais, mas acima de tudo sociais e de integração». Com uma visão antropológica coerente e de largo espectro, atenta e preocupada, D. Manuel conhece bem o terreno, as suas gentes e agentes, as forças em acção, não abdicando nunca de intervir e exercer o direito de opinião, dentro da esfera das suas competências e deveres. E é uma voz ouvida. Ou não fosse, afinal, o responsável máximo da mais importante, senão única, entidade nacional com acção política e social, através principalmente da Cáritas (fundada em 1981) – o braço da Diocese neste quadro de apoio aos pobres, carenciados, órfãos, idosos, desintegrados, às vítimas das conjunturas político-económicas que devastam África, que recebe também algum apoio de ONG’s de matriz católica, bem como de outras.
A Diocese é pequena, diríamos, mas empenhada. Segundo D. Manuel, há 14 paróquias, uma das quais é a Ilha do Príncipe (região autónoma), possui igual número de sacerdotes: sete claretianos (quatro santomenses, um português e dois angolanos), cinco diocesanos (dois portugueses e três santomenses) e três do Instituto Missionário de São João Eudes (fundado na Colômbia pelo padre Humberto Lugo Argüelles, na década de 80 do século XX), um dos quais opera no Príncipe. O bispo refere-nos a existência de um Seminário Menor (Madre de Deus), com oito seminaristas, animado por um sacerdote. Alguns seminaristas menores, recorda, «estão ligados aos claretianos», congregação com tradição missionária no arquipélago (aqui desde 1927). Os seminaristas diocesanos (maiores) estudam fora do País: oito em Angola (seis na Arquidiocese de Luanda e dois na de Benguela), além de dois no Patriarcado de Lisboa. Neste último, D. Manuel lembra existirem duas bolsas de estudo para seminaristas diocesanos santomenses.
D. Manuel enaltece «a acção inigualável das religiosas no arquipélago, um dos pilares das obras sociais da Igreja, fulcral no combate à pobreza e às necessidades e carências crónicas de boa parte da população». São mais de trinta as religiosas na Diocese: Teresianas, Canossianas, Franciscanas Hospitaleiras da Imaculada Conceição, as Servas da Sagrada Família e Franciscanas Missionárias de Nossa Senhora. O prelado salienta o notável e imprescindível labor das Irmãs, em conjugação com os sacerdotes e a Diocese, além da Cáritas de STP e de Portugal, ou das Misericórdias, além de outras instituições eclesiásticas portuguesas.
O «ciclo de pobreza é de facto» mitigado, aponta D. Manuel, pela «acção das congregações religiosas» citadas, através principalmente da «educação» (nos vários lares de meninas, por exemplo), pois, enuncia, «a base da família é fundamentalmente a mãe». Acolhimento, alimentação e preparação para a vida são os escopos desses lares das “Meninas das Roças”, uma das apostas da Igreja, refere, além de lares de idosos, centros de infância, creches, unidades de fisioterapia ou cuidados de saúde elementares. Assim, as Irmãs Teresianas dirigem um lar de quarenta meninas nos Angolares, no sul da Ilha (para meninas da 5ª à 8ª classe) e um outro, com uma dúzia de adolescentes, na cidade de São Tomé (para meninas da 9ª à 11ª classe). As Irmãs Canossianas têm igualmente um lar em Santana, com 25 crianças. A paróquia de Santana dirige também um lar com 22 crianças meninas e um com vinte rapazes. Já as Irmãs Franciscanas Missionárias de Nossa Senhora dirigem um outro lar em Guadalupe, na zona norte da Ilha com 21 meninas. Sem estas obras sociais da Igreja não haveria política e acção social.
Na vertente da educação, D. Manuel fala também do «Instituto Diocesano de Formação João Paulo II (IDF), fundado pela Diocese com apoio do Estado português, mas com declarada e real matriz católica», animada, reforça o bispo, por «valores de justiça, verdade e abertura». O IDF possui actualmente quatrocentos alunos, do 5º ao 12º anos. É uma «escola reconhecida pelo Ministério da Educação de Portugal, funcionando como escola portuguesa em São Tomé e Príncipe». Tivemos a oportunidade de a visitar e assim aquilatar da sua notoriedade em termos de projecto educativo e missão, reconhecida como a melhor escola secundária do arquipélago. Outras escolas existem na Diocese, animadas e geridas pelas congregações religiosas femininas referidas, assegurando educação, alimentação, formação e assistência neste país onde o dia a dia é um milagre, como descreve D. Manuel. «A Igreja – acentua o bispo – considera a educação como o caminho mais eficaz para libertar as pessoas da pobreza». Não só dar o peixe, mas ensinar também a pescar.
Pobreza
A «realidade social é difícil», está tudo por fazer, com «elevada dependência de ajudas do exterior». Com um alto índice de natalidade – nos últimos trinta anos a população passou de sessenta mil habitantes para os 180 mil – STP é um «país jovem (mais de 50% da população tem menos de 18 anos), com muitas dificuldades, num caldo cultural complicado, que afecta a realidade social». «As importações, essenciais para a sobrevivência da população», fazem disparar preços, num país onde o salário mensal médio é de trezentas patacas. Por isso todos vendem, para tentar apaziguar as dificuldades. Nas «famílias, numerosas, instáveis, a figura paternal continua a ser quase ausente, ou reduzida em impacto, pois a mãe, a mulher, é a referência. Educar os filhos (de vários pais muitas vezes), criá-los e alimentá-los afigura-se normalmente – diz D. Manuel – como tarefa das mães. Daí a aposta na educação feminina por parte da Igreja».
O «espectro da pobreza domina», nas palavras do prelado, «criando situações de degradação moral, alcoolismo, gravidezes adolescentes, abandono escolar, comportamentos de risco, doenças venéreas, etc.» Tudo num cenário paradisíaco, de mar e floresta, plantações, com centenas de roças, antigas ou em exploração, terras férteis e praias idílicas. O turismo é o futuro, já que o petróleo ainda é uma miragem, dada a profundidade em que se encontram os jazigos offshore. Mas «o turismo – equaciona D. Manuel – pode trazer problemas de inflação, carestia, de abandono das terras e da economia de subsistência, desintegração social, delinquência e todos efeitos sociais que podem surgir». Ou o «reverso da moeda», o lado negro do turismo, como já começa a suceder no Príncipe, onde se sente já falta de produtos hortícolas nos mercados locais, ou então a preços que a população não aguenta. E as instituições de caridade (da Igreja) também não, já que asseguram a alimentação de milhares de pessoas em STP. Com a pobreza a crescer, com as instituições de caridade a lutar pela sua mitigação, o drama aumenta.
Todo este cenário ganha matizes mais escuras numa «sociedade onde a cultura mágica e neo-pagã começa a ganhar força», numa «terra de vivência mestiça, de caldo cultural com dificuldades de vida». Daí a presença cada vez mais notada de Igrejas evangélicas com dízimos e «promessas de felicidade e facilidades, pondo Deus ao serviço dos homens e já não o contrário», analisa D. Manuel. A «alienação» emparelha com essa situação, nesta «terra onde o medo é cultural, onde o dualismo bem/mal impera». Alienados, sentem-se perdidos, inseguros: claro, tudo o que se lhes aparecer a prometer segurança e algo melhor, fácil, logo é abraçado. «Seguir Cristo, pegar na sua Cruz com Ele, em liberdade, mas com esforço e persistência, é mais difícil nos dias de hoje», enuncia D. Manuel. Por isso, adianta, os «católicos em São Tomé e Príncipe são cada vez mais tímidos, vivendo com vergonha a sua fé», faltando, por exemplo, «líderes leigos a apoiar a Igreja, publicamente», embora haja bons exemplos, como o presidente da Câmara Distrital de Lembá, na costa oeste da Ilha de S. Tomé, muito empenhado na vida eclesial, como testemunhámos aliás.
D. Manuel afirma «existirem boas relações entre a Igreja e o Estado, sem problemas e com diálogo». «O papel social do Estado é, aliás, assegurado pela Igreja». Também existe um bom relacionamento, regular, com a Santa Sé e com a Igreja em Portugal ou de outros países lusófonos, principalmente Angola. Existem ainda, relembra, «problemas quanto à situação jurídica da Igreja em São Tomé e Príncipe desde a Independência em 1975», sem «clarificação institucional e enquadramento jurídico», mantendo-se quase como antes daquela data, «sem novas leis». Assim, poder-se-ia dizer que o antigo «Acordo Missionário se mantém em vigor, na prática». Em STP «há um espírito religioso forte, com forte influência da religiosidade popular portuguesa, visível nas festas, procissões, liturgia», acrescenta D. Manuel, sublinhando que «a prática religiosa até tem aumentado, com as missas das seis horas da manhã sempre repletas». «A presença do sacerdote aumenta e fortalece a devoção», daí que se pugne por mais missionários. Quanto a sacramentos, perguntámos? «Baptismo é normal, socialmente importante, como o Crisma, mas quanto aos outros a situação é diferente, com uma taxa de casamentos católicos baixa», pois as «uniões de facto», uma ou várias ao mesmo tempo, «são comuns», devido a problemas de «insegurança afectiva, os tais medos, ou a cultura machista, bígama», ainda marcante na sociedade santomense. O «índice de auto-estima é muito baixo, com complexo de inferioridade cultural forte», colectivamente.
Concluindo, «não se pode esconder os problemas debaixo do tapete, há que os identificar e trabalhar neles, superar, ser realista, criar uma economia social integradora forte, que não exclua», remata D. Manuel, empenhado e com uma naturalidade simples mas directa. Com um realismo que impressiona, uma agudeza na análise e uma visão própria de quem conhece a realidade africana e destas ilhas. «Porque as ilhas são sistemas frágeis». Mas em São Tomé e Príncipe há fé e esperança, alegria, hospitalidade e uma Igreja missionária que quer pegar na Cruz com Ele, sem desistir ou esmorecer.
Vítor Teixeira
Em São Tomé e Príncipe