«Língua de Camões sofre doença degenerativa»
Ana Laíns nasceu em Tomar e viveu até à idade adulta em Montalvo, pequena aldeia do concelho de Constância. Desde cedo começou a cantar de forma descomprometida «em festivais locais, festas de amigos, bandas de garagem». Canta o primeiro fado aos 15 anos, e aos 19 vence a Grande Noite do Fado de Lisboa no Coliseu dos Recreios. Paralelamente ao Fado, foi deixando entrar outros géneros na sua vida, «muito por força das circunstâncias». Cantou em bares, casinos, hotéis. Em Francês, Inglês, Castelhano, Italiano. Teve bandas de jazz e bossa nova. Fez musicais, shows de casino, cantou com orquestras e big bands. Fez coros para outros cantores em palco e em estúdio. Enfim, fez quase tudo o que havia a fazer no chamado “mercado paralelo”. Nunca se fechou à descoberta, à possibilidade de se desafiar enquanto cantora, de conhecer pessoas, de experimentar coisas novas. Tudo isto, sempre, paralelamente à Língua de Camões, ao Fado e à Música Tradicional Portuguesa, que são simultaneamente a sua grande paixão.
O CLARIM – Há alguma tradição familiar que a tenha levado a tomar este rumo?
Ana Laíns – Na minha família não há tradição na música. O que poderia ter ditado alguma dificuldade na aceitação por parte dos meus pais. Mas isso não aconteceu. Tenho a felicidade de poder afirmar com convicção que tive os melhores pais do mundo. Não por me fazerem todas as vontades ou me deixarem ao “abandono” nas minhas decisões. Mas porque me ensinaram que as nossas decisões sempre vêm acompanhadas de consequências boas e más, e que nós somos os grandes arquitectos das nossas vidas.
CL – Foi nomeada, em Junho de 2014, embaixadora para as celebrações dos 800 anos da Língua Portuguesa. Como é que surgiu essa oportunidade e qual o significado para a sua carreira como cantora?
A.L. – O convite surge pela mão da presidente da associação “8 séculos de Língua Portuguesa”, Maria José Maya, na sequência de um encontro por ocasião do dia Mundial da Poesia, no Palácio de Belém, a convite da primeira-dama Maria Cavaco Silva. Tive a oportunidade de cantar neste encontro poético de celebração da efeméride, e acabei por desenvolver uma série de afinidades com Maria José Maya, que pouco tempo depois me lança este convite. Convite que aceitei de bom grado e com muita honra. Considero um excelente barómetro do trabalho que tenho desenvolvido enquanto cantora, enquanto defensora da Língua Portuguesa e da cultura e etnografia portuguesas.
CL – A efeméride “800 anos da Língua Portuguesa” toma por referência o segundo testamento de D. Afonso II, que remonta 27 de Junho de 1214. Qual é o estado de saúde da fala de Camões?
A.L. – É uma questão sensível e de resposta demasiado pessoal. A Língua é um organismo vivo e em constante metamorfose, independentemente do que consideramos correcto ou incorrecto. Mas acredito que o grande problema do saudável desenvolvimento da nossa língua passa pela importância exacerbada que se dá a outros idiomas, nomeadamente o Inglês. Claro que compreendo o papel do Inglês enquanto forma de comunicação e contacto entre povos globalizados. Mas não posso compreender que conste dos conteúdos programáticos nos primeiros anos do ensino, e numa altura em que as crianças ainda estão a desenvolver a sua língua materna, o Português. Acredito que há “pequenos nadas” que podem servir enquanto estimuladores do gosto pela Língua, mas que dependem de um trabalho de equipa, quase utópico, em várias frentes. As escolas em parceria com as editoras e os meios de comunicação de impacto imediato, como as televisões e a imprensa escrita. Portugal é um país onde pouco se estimula a leitura, onde a música portuguesa continua a ser o parente pobre, e onde se adopta tudo o que são formas de expressão vindas do estrangeiro. As televisões estão inundadas de lixo (e não peço desculpa pelo termo que utilizo), as rádios continuam a passar uma percentagem confrangedora de música estrangeira, e a percentagem de livros e discos que se gravam em Português continua em flagrante desvantagem. Um barómetro inquestionável sobre o estado da Língua Portuguesa é a própria imprensa escrita, as lacunas e erros primários que vemos todos os dias. A minha opinião pessoal é esta. Poderíamos estar melhor. Compreendo que numa Era de globalização diabólica e sem regras de conduta, onde vale tudo e tudo é permitido em prol de interesses económicos e de poder, a Língua de Camões sofre de uma doença degenerativa, sobre a qual vão sendo aplicados alguns cuidados paliativos. Porém, eu, Ana Laíns, ainda acredito que a cura pode vir a ser descoberta.
CL – Recentemente a FIFA, num acto de desprezo para com centenas de milhões de falantes, retirou a Língua Portuguesa da sua lista de línguas oficiais, mantendo idiomas bem menos relevantes, como é o caso do Alemão. Que lhe ocorre dizer sobre isso?
A.L. – Ocorre-me dizer que, indeliberadamente, acabo de responder a esta questão na pergunta anterior. Mas posso acrescentar que é, de facto, hilariante que uma instituição como a FIFA retire a Língua Portuguesa da sua lista de línguas oficiais, uma vez que se trata da língua mais falada em todo o Hemisfério Sul. Além da incontestável história do futebol, onde países como o Brasil e Portugal têm alguns dos nomes mais relevantes, e maior número de títulos conseguidos.
CL – Em que medida podemos tirar partido desse património linguístico que todos, lusófonos e amigos da Lusofonia, temos em comum?
A.L. – Talvez eu tenha uma visão um pouco “naive” relativamente a esta questão. Para começar, poderíamos utilizar o facto de “falar a mesma Língua” para nos tornarmos povos mais unidos, humana e espiritualmente mais próximos, e culturalmente mais interactivos e cooperantes. Todos os países em questão têm imenso potencial humano e recursos naturais muito privilegiados. Eu acredito que nascemos num determinado lugar (e não noutro) por condição, e que temos uma missão para com esse lugar. Acredito que temos um caminho individual para percorrer enquanto elementos de um todo, a que gosto de chamar “Eu Colectivo”. E sinto vontade de afirmar, sem receios, que se todos nós transportássemos esta noção na nossa “bagagem pessoal”, maior capacidade teríamos de tirar o maior partido possível do potencial que tem esta partilha que nos é facilitada por ter em comum este bem maior, que é a Língua Portuguesa. Poderá não ser uma resposta objectiva. Mas é uma resposta para reflexão.
CL – Como encara esse facto consumado, já com décadas, que é o total domínio da música anglo-saxónica nas rádios em Portugal? Considera isto um acto suicida de um povo, ou apenas um dado irrelevante?
A.L. – Uma vez mais, acredito ter-me antecipado ao ter respondido a esta questão numa das questões anteriores. Mas complementando o que já disse relativamente a este tema, acredito que a inclusão de formas de expressão exteriores à nossa não seria um problema, se todos nós assegurássemos com naturalidade a defesa de quem somos, das nossas raízes e identidade cultural. Eu oiço música anglo-saxónica, leio livros de autores estrangeiros, mas acredito ter alicerces seguros em relação à minha identidade, que me permitem interpretar essa inclusão como forma de partilha, de conhecimento, de desenvolvimento humano e de apreciação saudável desta globalização em que vivemos. E nunca como forma de adopção dessas mesmas culturas. Os Estados Unidos dominam completamente o mercado mundial, porque reúnem condições geográficas e demográficas naturalmente privilegiadas. Mas a Inglaterra não e, no entanto, é um mercado fortíssimo. Ora, sendo a comunidade de falantes de Português superior a 250 milhões, imagine-se o potencial que existe aqui! Mas para que tal aconteça há um longo caminho de sensibilização a ser feito. Esse é, também, um dos grandes objectivos destas comemorações.
CL – Que me diz de uma lei que obrigasse a transmissão de uma quota substancial de música portuguesa, ou em Português, em todo o audiovisual, estatal ou privado?
A.L. – Na realidade essa lei existe e está em vigor, sendo a última actualização do ano de 2009. No serviço público cumprem essa obrigação, que passa por corresponder em 60%. Nos restantes essa quota obrigatória é de um mínimo de 25%. Uma percentagem pouco convincente e muito aquém do desejável. Eu sou da opinião que os meios de difusão são educadores e representam um papel de muita responsabilidade enquanto formatadores, fazedores de opinião. E não o contrário. Regularmente vejo-me envolvida em discussões sobre o que os portugueses querem ou não ouvir e ver. Há muito boa gente com responsabilidade nesta área que me diz que é o público quem define o que vai ou não acontecer, o que vai ou não ser comercializado. Ora eu sou peremptoriamente contra esta ideia. Quem tem o papel de educador numa família? O pai e a mãe, ou são os filhos? Quem tem o papel de educador numa escola? O professor ou o aluno? Cabe aos “educadores” encaminhar os “educandos” no sentido de conhecer a sua história, o seu país, a sua Língua, e consequentemente alimentar o respeito e o amor pela sua identidade.
CL – A própria Antena 1 poderia fazer muito mais pela divulgação da música nacional, ou considera que faz o suficiente?
A.L. – Acredito que neste caso em particular o dever está a ser cumprido. A Antena 1, de um modo geral, é a rádio mais equilibrada. É além disso a rádio que mais oportunidade oferece à nova música portuguesa e cantada em Português. Logicamente, da mesma forma que nós, enquanto criadores que desejamos expandir o nosso mercado, gostamos de ouvir a nossa música em rádios internacionais, é natural que a música que vem de fora também deva ser recebida por nós. A questão passa pela triagem que não é feita utilizando critérios válidos, e sim, critérios que se prendem com os interesses das editoras multinacionais.
CL – Fale-nos da sua discografia? Tem novo disco no horizonte? Como é que se costuma apresentar em palco? Com quantos músicos?
A.L. – Eu canto profissionalmente há 16 anos. Comecei a cantar enquanto profissional em 1999, mas o meu primeiro disco surge apenas em 2006. Chama-se “Sentidos” e já foi um disco que adivinhava uma cantora polémica devido às escolhas que fiz. Não foi um disco de Fado, nem com facilidade em rotular. Mas foi um disco que gritou em plenos pulmões “esta sou eu, e isto é o que eu faço”. Já trouxe muita cor, pianos, percussões, Fado, música etnográfica do Alentejo, Chula, e poetas pouco prováveis (como António Ramos Rosa ou Lídia Oliveira). Na época foi considerado um dos grandes lançamentos do ano, foi muito bem criticado e recebido pela Imprensa… já pelo meio fadista, nem tanto! Toquei um pouco por todo o lado, na Europa mais concretamente, e fui deixando as minha sementes. O segundo trabalho apenas surge quatro anos depois. “Quatro Caminhos” foi um disco muito pensado e sentido. É o resumo de tudo o que aprendi com o antecessor. Reflecte todas as minhas certezas e todas as minhas dúvidas. Depois do seu lançamento deixei o management com quem estava, e decidi tomar conta da minha carreira pelas minhas próprias mãos, uma vez que eu não quis ser a cantora que queriam que eu fosse. Não sei defender mentiras. Prefiro as minhas verdades. Só assim tenho como defender-me de quem não se identificar com elas e de me entregar a quem aceita entrar no meu mundo. Nos últimos três anos, essencialmente, tenho crescido no mercado, demarcado a minha posição, e alcançado respeito pelo espaço que ocupo. Independentemente de ser grande ou pequeno, é o meu espaço. Hoje em dia, sou muito segura da música que faço e quero fazer. Sou uma cantora portuguesa. Não sou fadista, nem considero importante ser vista como tal. Gosto de pensar em mim como cantora étnica, de cariz tradicional português. Na minha formação em palco conto com o pianista multi-instrumentista Paulo Loureiro (piano, baixo e clarinete) que é o director musical. Depois tenho o Sandro Costa na guitarra portuguesa, o Carlos Lopes no acordeão, o Miguel Veras na Viola e o João Coelho na percussão. Eu mesma toco adufe em alguns dos temas de recolha que tocamos, de forma descomprometida e apaixonada. O nosso concerto é uma viagem por toda a cultura e formas de expressão portuguesas, desde o Fado, passando pelas Beiras, Trás-os-Montes e o nosso Mirandês, Alentejo, etc. Depois há a poesia que vai de Pessoa a Florbela, passa pelos grandes talentos da escrita actual, como o Diogo Clemente, o Tiago Torres da Silva ou a Amália Muge. Neste momento, devido a esta parceria com as Comemorações de 8 séculos de Língua Portuguesa, o próximo disco está na gaveta, prontinho para sair em 2016. Porém, considerei que este projecto de celebração da nossa Língua seria muito mais importante e revigorante para mim e para a minha música.
CL – Tal como a Ana Moura, actuou também com nomes sonantes do panorama pop/rock, no caso Boy George, dos Culture Club. Como encarou essa experiência?
A.L. – Achei curioso, divertido, gratificante, estimulante e bonito de se viver. Foi muito inesperado, mas foi uma oportunidade que não quis perder. Não foi muito relevante em termos de avanço na minha carreira, no entanto, é algo que faz parte do meu currículo e me honra muito. Um dia poderei olhar pra trás e pensar: “Meu Deus, olha como a minha vida foi divertida e repleta, plena e intensamente vivida”.
CL – Em Julho, finalmente, um concerto no CCB (Centro Cultural de Belém). Era um objectivo que tinha em vista?
A.L. – Na realidade não era um objectivo a curto prazo. O CCB é uma sala emblemática e das mais prestigiantes do País. Em circunstâncias normais, deixaria uma sala desta envergadura para um 3º ou 4º disco, porque acho que o caminho deve ser feito andando, e não correndo. Todavia, um concerto de encerramento destas Comemorações de 8 séculos de Língua Portuguesa, onde se pretende fazer uma festa Lusófona, com convidados especialíssimos de cada um destes países, onde se pretende apresentar canções novas que nascem devido a este projecto, como é o exemplo do tema “Acácia Rubra” que me foi oferecido pelo enorme José Eduardo Águalusa, ou o poema Dicção de Nuno Júdice, teria de se transformar num evento proporcional à importância desta efeméride. E foi por isso que o CCB se juntou a nós como parceiro. Tenho a certeza que será um concerto memorável.
CL – Gostaria de actuar em Macau? Há algo definido nesse sentido?
A.L. – Conhecer Macau é um dos meus grandes sonhos.
Macau está intimamente ligado à história do meu país, logo, à minha própria história. E se a porta de entrada pudesse ser este concerto de Comemoração da Língua Portuguesa, muita mais especial e simbólico se tornaria para mim. Há propostas entregues. Espero que pelo menos uma possa despertar o interesse e tornar possível um concerto meu ainda este ano. Vamos ver. Estou totalmente disponível. Diria mesmo, ansiosa.
Oitocentos Anos da Língua de Camões (Caixa)
A associação “8 séculos de Língua Portuguesa” tem o alto patrocínio da Presidência da República, estatuto de interesse cultural concedido pela Secretaria Geral da Cultura, apoio do Instituto Camões, entre muitos outros apoios institucionais, e tem vindo a desenvolver uma série de iniciativas. Afirma-se como uma «associação dinâmica nas mais diversas formas de celebrar a cultura portuguesa».
Em parceria com a Egeac e a Casa Fernando Pessoa, tem organizado tertúlias poéticas dedicadas a cada um dos países de Língua Oficial Portuguesa, sendo que esta iniciativa culminará em Maio com a tertúlia dedicada a Portugal.
Juntamente com a Imprensa Nacional-Casa da Moeda, foi desenhada e editada uma moeda comemorativa da efeméride. Foi também criado o primeiro selo lusófono, aprovado por toda a comunidade de falantes de Português.
Outro dos focos das comemorações prende-se com a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto e as Comemorações de 400 anos sobre a obra. Em colaboração com o Convento dos Capuchos e a Câmara Municipal de Almada, têm igualmente sido desenvolvidos alguns eventos, tal como com o Museu do Oriente, onde esteve patente a exposição “Esplendor e Engano”, da autoria de Isa Duarte Ribeiro e Pureza Oliveira.
Enquanto embaixadora cantora/fadista, Ana Laíns realizou um concerto em Outubro de 2014, no Centro Cultural Olga Cadaval, em Sintra. A artista foi ainda protagonista, no passado dia 10 de Janeiro, do concerto de Ano Novo na Escola Superior de Música de Lisboa, a convite da Banda Sinfónica da PSP.
A 4 de Julho, no Centro Cultural de Belém, irá ser levado a cabo o concerto de encerramento das Comemorações, «um concerto Ana Laíns enquanto anfitriã de toda a Lusofonia», onde estarão convidados de todos os países. O concerto ficará registado em DVD, e será mais um objecto de valor simbólico da efeméride. As vendas irão reverter para associações ligadas à literacia e desenvolvimento da língua portuguesa.
Há outras iniciativas programadas, nomeadamente a apresentação do concerto junto de toda a família de falantes de Português, incluindo Macau. Os organizadores esperam poder contar com uma resposta afirmativa muito em breve.
Joaquim Magalhães de Castro