Celebração da Liturgia

AD ORIENTEM

“Ad Orientem” é uma expressão de uso litúrgico que nos remete para a orientação para a qual o celebrante e o povo deverão estar voltados. Ou orientados. Sem sentido literal ou geográfico, é acima de tudo a direcção para a qual a celebração deve estar direccionada, na eucaristia, essencialmente.

Esta expressão opõe-se à designada “versus populum”, ou seja, “voltado para o povo”, com o celebrante a estar de frente para a assembleia de fiéis. Esta foi implementada pelo Concílio Vaticano II. O termo “versus absidem” (“de frente para a ábside”, ou cabeceira da igreja) é uma expressão homóloga, muito usada pela Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos. “Versus Deum” (“de frente para Deus”) ou “coram Deo” (“na presença de Deus”) são outras designações por vezes usadas. Mas para cada uma não há consensos e as questões são algumas até polémicas.

Este tema tem alimentado debates de natureza litúrgica e teológica desde pelo menos o fim do Concílio Vaticano II, em 1965. Mas neste ano de 2016 ganhou particular ênfase e tem animado uma reflexão curiosa. Tudo porque o Prefeito da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, cardeal D. Robert Sarah, arcebispo emérito de Conacri (Guiné), em entrevista à revista católica francesa Famille Chrétienne, a 23 de Maio deste ano, afirmou que o «melhor meio» para que Deus seja o centro da liturgia é «celebrar – sacerdotes e fiéis – todos na mesma direcção: voltados para o Senhor que vem. Não se trata, como por vezes se entende, de celebrar de costas para o povo ou de o olhar de frente. O problema não é esse. Trata-se de olharmos todos juntos para a ábside que simboliza o Oriente onde está o trono da cruz do Senhor ressuscitado».

As declarações do máximo responsável pela liturgia e sacramentos da Santa Sé causaram logo discussão. O purpurado ressalvou que “Ad Orientem” permite que a liturgia seja acima de tudo a nossa participação no sacrifício perfeito da cruz. Mantendo a defesa das suas afirmações, o cardeal Sarah reiterou que a celebração voltada para o povo definida no Vaticano II não é uma obrigação, mas acima de tudo uma possibilidade que se recomendou. «A liturgia da palavra justifica que se vejam cara a cara o leitor e o povo, o diálogo e a pedagogia entre o sacerdote e o seu povo. Mas como chegamos logo ao momento em que um se dirige a Deus – do Ofertório em diante – é essencial que o sacerdote e os fiéis olhem juntos na direcção do Oriente». Tal como defendiam os padres conciliares, rematou o cardeal da Guiné-Conacri. Que recordou ainda que a celebração “Ad Orientem” está prevista e autorizada pelas rubricas que especificam os tempos em que o celebrante se deve voltar para o povo, pelo que por isso não é necessário permissão especial para se celebrar a olhar para o Senhor.

O cardeal Sarah defende uma reflexão sobre este tema, alertando para que a liturgia não se converta num espectáculo. Ou que se torne algo demasiadamente humano, à altura dos nossos desejos e das modas do momento, como se fosse um encontro de amigos e já não a celebração do amor de Cristo. Já não se celebra um sacrifício mas sim uma liturgia criativa e festiva. «Para os cristãos a Eucaristia é um assunto de vida ou de morte!», alertou, considerando a liturgia como a porta de união com Deus e não uma auto-celebração humana, na qual Deus desaparece. «Deve-se pois voltar para Deus», conclui, pois Ele está no coração da liturgia, na qual se joga o destino da Fé e da Igreja.

 

Santa Sé esclarece

Todo este debate suscitou da parte da Santa Sé uma reacção, no sentido de clarificar e explicar. Primeiro, que não existem quaisquer novas directivas litúrgicas. Apenas uma sugestão do cardeal Sarah, que aliás a reafirmaria em Londres a 5 de Julho, quando reforçou que deveria haver uma reorientação de sacerdotes e fiéis todos voltados para o Oriente, ou pelo menos para o tabernáculo. Propôs ainda que se começasse a celebrar assim a partir da Missa “Ad Orientem”, o primeiro domingo do Advento (27 Novembro 2016), pedindo para tal a devida catequese e preparação.

Todavia, a Santa Sé afirma que as normas relativas à celebração eucarística em vigor se mantêm, afirmando-o em comunicado de 16 de Julho, na linha do que aliás vem plasmado no nº 299 da Instrução Geral do Missal Romano, que prevê “que se construa um altar separado da parede, de modo que se possa contornar facilmente e a celebração se possa realizar de frente para o povo, o que convém que seja possível em todas as partes. O altar, assim, que ocupe o lugar que seja de verdade o centro para o qual espontaneamente convirja a atenção da assembleia dos fiéis”. Esta forma, prevista no Missal promulgado por Paulo VI, foi considerada pelo Papa Francisco, expressamente numa visita àquela Congregação presidida pelo cardeal Sarah, como a forma “ordinária” de celebração da Missa (“versus populum”), enquanto a “Ad Orientem” é “extraordinária”, conforme o Motu Próprio Summorum Pontificum de Bento XVI, de Julho de 2007. Esta não deverá, explica o Motu Próprio, “tomar o lugar da forma ordinária”. Tudo isto, refere o comunicado da Santa Sé de 16 de Julho, foi devidamente expressado numa audiência concedida pelo Papa Francisco ao cardeal Sarah.

Os primeiros cristãos rezavam na direcção do Oriente geográfico, como referem Tertuliano e Orígenes (sécs. II-III). A obra Constituições Apostólicas (375-380) infere a norma de construção das igrejas com o presbitério (ábside e sacristias) na extremidade leste, voltado para Oriente, portanto, definindo o sentido para o qual deveriam rezar os cristãos. Mas surgiram variações, no oposto até, com cabeceiras a poente, por exemplo. Em Roma e Jerusalém também se registava esta ambiguidade arquitectónica, que só foi ultrapassada nos sécs. VIII e IX, por influxo germânico, com a adopção dos altares na cabeceira voltada a Oriente e as entradas na fachada poente. Mas as variações em várias regiões teimaram em subsistir, pelo que também não se poderá estabelecer como uma regra antiga.

Mesmo a edição do Missal Romano tridentino de Pio V em 1570 ainda não era precisa quanto à colocação do sacrário no altar, ordenando apenas que nele existisse apenas uma cruz e junto desta uma “sacra” com orações. Essa “imprecisão” do Missal de Pio V permitia desta forma a celebração “versus populum”. Mas impor-se-ia no entanto a tradição do sacrário no altar-mor, sobre este, ornamentado e visível da assembleia, reforçando a presença real de Cristo na Eucaristia. Era pois impossível assim a celebração “versus populum”. Assim seria até ao Vaticano II, quando se reformulou a liturgia e ao mesmo tempo a própria arquitectura, abrindo-se o tempo da celebração voltada para o povo de Deus. Mas não desapareceu, pelo contrário, a celebração “Ad Orientem”…

Vítor Teixeira

Universidade Católica Portuguesa

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