O trisneto do avalista da Nação
Do seu trisavô Henrique Burnay, conhecido banqueiro do século XIX, guardou Afonso de Burnay, sobretudo, o gosto pelo coleccionismo. Mas também a inquietude própria dos que não se contentam em ficar, vendo-se, portanto, na obrigação de um constante partir. Seja em viagens reais, como as que viveu Afonso em África; seja por uma presença sedentária, mas activa nos mais diversos sectores da actividade num país em decadência onde não faltavam oportunidades de negócio. Todas elas aproveitadas por Henry, cidadão de origem belga nascido em Lisboa em 1838, que Rafael Bordalo Pinheiro caricaturou várias vezes, sendo a mais famosa a do “Álbum das Glórias” em que Burnay surge como alguém que “compra, vende, troca, empresta, põe, dispõe, impõe, repõe, fia, fura, faz”.
Faz! Eis o imperativo que melhor caracteriza um homem sobre quem Ramalho Ortigão, sob pseudónimo, escreveu o seguinte: “se lhe aparece um rio debaixo dos pés, ele bota-lhe uma ponte por cima; se lhe surge uma montanha, fura-a para o outro lado com um túnel; se um vale se interpõe, galga-a com um viaduto… Um! Dois! Três! E está pronto. Inaugure”.
Influente quão controversa personagem, Henry Burnay era aquilo que se pode chamar de capitalista iluminado, reconhecido no País e no estrangeiro, e cuja alcunha era o Topa-a-tudo.
O TABACO E A ALPACA
Inúmeros e variados foram os interesses de Burnay na vida económica do País. Bancos (foi um poderoso accionista do Banco Nacional Ultramarino), caminhos-de-ferro, construção de bairros, metalúrgica, unidades vidreiras, minas, construção de portos, companhias de navegação, jornais, empresas coloniais, etc…
Mas nenhum deles foi tão importante para a sua ascensão como o tabaco. Conseguiria o monopólio da comercialização desse popular e rentável produto (gerador de algumas das fortunas nacionais) em troca de um empréstimo ao Estado em 1890, quando o tesouro nacional se viu em grandes apertos. Mas já antes, em 1879, Burnay tinha sido avalista do Governo garantindo assim um volumoso empréstimo contraído junto dos bancos franceses, pois a sua palavra inspirava mais confiança que a dos ministros todos juntos.
Como resultado, ao virar do século tinha fundado, entre outras, a “Companhia dos Tabacos de Portugal”, no sector dos tabacos; a “Empresa Industrial Portuguesa”, no sector da metalúrgica; a “Companhia de Tecidos Aliança”, nos têxteis; e a “CUF”, nos sabões. Negócios, todos eles, geridos por familiares ou amigos próximos.
Foi acusado de ser plutocrata, especulador, Moloch da alta finança internacional, tendo sido especialmente visado em diversas campanhas jornalísticas. Para Bordalo Pinheiro ele era “estrangeiro, banqueiro, onzeneiro, folião. Tem Portugal inteiro apertado na mão”.
Mas Burnay, para além do génio financeiro, era conhecido também pela sua actividade filantrópica, tendo mandado construir bairros sociais, colégios para órfãos e os albergues nocturnos de Lisboa. Chegou inclusivamente a intervir a favor da classe operária, no Porto, durante a grave crise de 1890.
«Em 1900, nove anos antes da sua morte», recorda o seu trisneto, «mandou instalar a primeira linha de telefone no País, que ia do Palácio da Ajuda ao Palácio da Junqueira, onde residia, para poder falar com o rei». Ele era assim como, nas palavras de Afonso, «um visionário da altura».
Afonso, que viveu parte da sua juventude em Espanha, «porque as coisas ali estavam mais calmas e a nossa família era meio espanhola», instalou-se definitivamente em Portugal em 1985. O País tinha na altura perspectivas de futuro, «ou assim parecia», e por isso constituiu a empresa “Companhia de Têxteis de Alfama”, seguindo as pisadas do seu antepassado e indo, afinal, de encontro à sua formação, pois estudara Desenho Têxtil e Industrial.
Fazia roupa e importava lãs de alpaca do Perú, «sem qualquer tingimento». Eram cores naturais, num processo que passava pela selecção dos animais na tosquia, porque o pêlo brilhante das alpacas tem diversas tonalidades. «Era a coisa mais ecológica e pura que se podia conseguir», garante Afonso. Apesar de revolucionário, o projecto acabaria por ir por-água-abaixo em 1989, devido aos problemas políticos no Perú.
A SOCIEDADE E O DESERTO
Em algo diferem enormemente os Burnay aqui retratados. O Henry de ontem era um apreciador da mundanidade, frequentador assíduo das casas das famílias mais influentes, inclusivamente a casa real, tendo-lhe, de resto, sido atribuído o título de conde em 1886 pelo rei D. Luis I. O Afonso de hoje cultiva a pacatez e o quási anonimato.
Henry comprava palácios que enchia de objectos e onde organizava bailes e banquetes. Ao Afonso basta-lhe a tranquilidade da sua quinta em Manique onde vive com a mulher e os dois filhos. Odeia centros comerciais, confusão e aglomerados de pessoas. O que mais gosta é de «apanhar a moto e desaparecer». E faz isso com frequência. Se tem tempo, ruma a Marrocos ou à Tunísia. Senão, fica-se por um recanto tranquilo em Portugal, que os há ainda. «Para viajar não é preciso percorrer muitos quilómetros, antes sim distanciar-se da contemporaneidade», filosofa Afonso.
E foi em busca desse distanciamento que em 1988 partiu para o Mali. Levava na mente a ilustração de um rei negro com uma bola de ouro nas mãos que vira num célebre mapa português do século XV.
«Ao ergueram feitoria em Arguim», recorda Afonso, «os portugueses tinham como objectivo estabelecer contacto com esse reino, onde se dizia haver muito ouro, só que entretanto ele tinha-se transferido para leste, dando origem ao reino de Tombuctu».
Afonso partiu para o Mali como etnólogo, mas cedo se viu transformado em arqueólogo. De 1988 até 1991 passou aí diversas temporadas, «de três a seis meses», fazendo trabalho de investigação. «Eram tempos difíceis pois toda a região era assolada então por uma grande seca, chegando a haver casos de suicídios devido à fome», recorda.
Foi entretanto convidado por um amigo, «dono do Continent Bank», para ir à Gâmbia e aos Camarões fazer explorações de carácter etnológico, tendo aproveitado a viagem para fazer estudos em Casamansa e conhecer os Bijagós, na Guiné Bissau, a única ex-colónia portuguesa que visitou até à data.
Em 1997, pesquisas no delta interior e ao longo do rio Níger resultaram no aparecimento de uns peculiares objectos de terracota. Afonso confessa ter ficado inicialmente chocado, pois nada tinham a ver com a tradição do artesanato africano que é «muito mais intuitivo, rápido». As peças de Bura – assim se designam por serem região de Bura, correspondendo à civilização de Bura Asinda Sikka – «são minuciosas, cheias de detalhes».
Os testes de carbono 14 realizados nas peças enviada para a Europa indicaram datas inesperadas. «Estamos a falar», esclarece o nosso anfitrião, «em 1200 ou 1900 anos de antiguidade, o que é imenso para a África». Apesar da débil base científica, chegou-se à conclusão que se estava perante um dos pólos comerciais entre a costa e a África interior, numa época em que todo o deserto do Saara era uma imensidão verdejante.
Para Afonso de Burnay ir ao deserto é não só uma viagem geográfica mas também uma viagem no tempo. «No Mali», recorda, «quando chove há zonas que ficam totalmente inundadas. O deserto fica então completamente verde». Dá para imaginar como era toda essa região há milhares de anos.
O BICHINHO DO COLECCIONADOR
«A nossa família tem origens em muitos países», diz Afonso. Pode-se começar na Inglaterra, de onde os Burnay, ligados ao comércio marítimo, fugiram, por serem católicos, indo buscar refúgio na Bélgica.
Jean Baptiste Burnay, avô de Henry, seria o primeiro membro dessa numerosa família a instalar-se em Portugal, em 1810. Fundou uma casa bancária no Porto onde o neto, aos dezassete anos, iniciaria carreira, como o próprio diz, «como simples caixeiro num escritório». Dono de um raro sentido de oportunidade, Henry arrendou, em 1865, o Palácio de Cristal para nele fazer um armazém. Dez anos depois, em parceria com um sócio belga, fundou a casa bancária “Henry Burnay & C”, que constituiria o alicerce da sua fortuna.
Era já na altura um homem casado, com Maria Amélia de Carvalho, de quem viria a ter nove filhos. Um dos quais, Jorge, foi o avô do nosso entrevistado.
Este, reconhece que o seu vício de coleccionador vem de família. «Desde caixas de fósforos a carrinhos miniatura, acho que fiz já colecções de tudo», diz ele. Muitas dessas colecções, vendeu-as, admitindo assim algum espírito mercantilista. «É bom ter muitas colecções para depois, se necessário for, podermo-nos desembaraçarmos de algumas delas, para arranjar dinheiro que nos permita iniciar novos projectos», conclui.
Afonso abriu a primeira loja de arte africana em Lisboa, no Bairro Alto, que entretanto encerrou. Hoje, trabalha directamente, via Internet, com uma série de coleccionistas que são os seus clientes. «Procuro as coisas que eles querem», sintetiza. Faz isso com peças antigas ou arte contemporânea.
África, porém, continua a ser o domínio onde melhor se move. Sobretudo se as peças forem originárias de Lobi, no sul do Burkina Faso, onde tem uma equipa no terreno a tempo inteiro. «Se aparece algo de bom sou imediatamente informado e os meus clientes também», diz.
Essa sua paixão pelo trabalho de investigação levou-o a recolher imagens para dois documentários. Um sobre o forte Príncipe da Beira no Mato Grosso, e outro sobre feitoria de Arguim. Mas nunca chegou a arranjar dinheiro para montar os filmes. «É muito difícil neste país fazer qualquer coisa que saia fora do âmbito dos reality shows ou das telenovelas», conclui, agastado.
No fundo, Afonso tenta com a sua actividade salvar «uma certa beleza e identidade que se está a perder cada dia que passa». À semelhança do trisavô Henri, que em «nome do que é belo» deixou uma valiosa colecção de obras de arte, que incluía pinturas, porcelanas, tapeçarias, têxteis e peças de mobiliário e de ourivesaria.
Joaquim Magalhães de Castro