Têxteis chineses do século XVII em Santarém

João Pereira Mourato, um bispo coleccionista

Num artigo publicado há dias no Correio do Ribatejo, o conhecido investigador da História da Arte, Vítor Serrão, traz a público a existência em Santarém de têxteis chineses datados do século XVII.

Nesse seu apontamento, Serrão começa por nos lembrar que a História de Santarém continua, na sua essência, por se fazer, citando, entre «os nomes ainda hoje ignorados», o do padre João Pereira Mourato, que foi bispo de Macau de 1639 a 1640, e peregrinou, antes e depois do seu ministério macaense, por outras terras asiáticas até ao seu falecimento em Goa, em data ainda por apurar.

O investigador socorre-se da leitura paleográfica, ainda inédita, de António Monteiro, para afirmar que «em 1645 este padre Mourato dotou, por vontade testamentária, várias casas religiosas da sua amada vila de Santarém com uma série de preciosos têxteis fabricados na China».

Grande parte dessas peças, recolhidas pelo «padre santareno na sua estância asiática», continua por localizar. Seriam, por vontade expressa do prelado, «ofertadas à igreja de Marvila, aos mosteiros de São Francisco e São Domingos, à Misericórdia e à ermida de São Roque». Serrão manifesta espanto por tão importante matéria ter permanecido no segredo dos deuses durante tanto tempo, pois «bastava o facto raríssimo» de o bispo Mourato ter enviado de Macau até à sua pátria essas peças de arte «para o assunto dever merecer a maior atenção dos historiadores», o que não aconteceu, pelo menos até agora.

Vítor Serrão destaca, pela sua riqueza, «o paramento bordado a matiz e ouro, com capa e dalmáticas, que existe no tesouro da igreja de Marvila, e bem assim uma interessante casula chinesa com características seiscentistas também em Marvila, mas proveniente de Santa Clara», que nos podem dar uma pálida ideia do precioso legado feito pelo padre João Mourato a alguns dos templos de Santarém. Como afirma o investigador, «não é possível afirmá-lo com absoluta certeza, mas poderão encontrar-se, entre elas, algumas dessas peças enviadas de Macau».

Nascido na freguesia escalabitana de Marvila em 1575 (filho de Gonçalo Pereira Franco e Vitória Gonçalves) João Pereira Mourato era conhecido pela alcunha “o Francês”. Não teve uma vida fácil. Ainda adolescente casou com Catarina de Salazar, de quem teve uma filha, mas cedo enviuvou. Em 1598 casa de novo, desta feita com Maria de Lemos, de quem teve também filhos. Amealhou entretanto considerável fortuna, acabando por ingressar como irmão na Misericórdia de Santarém, «entidade que viria depois a dotar generosamente». Só que a desdita não o tinha ainda abandonado. Voltou a enviuvar, e, uns após os outros, todos os seus filhos morreram. Só então, já com uma idade considerável, optou pela vida religiosa. Do pouco que se sabe do seu percurso eclesiástico, há a destacar o seu indigitamento, em 1639, para bispo de Macau, cargo que assumiu até ao triunfo da Restauração dos Braganças, dos quais era fervoroso adepto. Serrão lembra-nos que Mourato certamente terá acompanhado «a fase de distúrbios ocorridos em Macau com a expulsão dos espanhóis, incluindo as freiras clarissas, e os efeitos do fim do comércio do Japão com os portugueses, que afectou bastante a cidade portuária». Em 1643, o arcebispado de Goa tentou dominar a situação, designando um governador do bispado de Macau, para retomar o controlo das instituições macaenses, mas tais esforços tiveram poucos resultados. «Tudo isto viveu o padre Mourato, estando na Ásia nesses anos, entre Goa, em cuja Sé instituiu ofícios, e Macau, onde redigiu o seu testamento datado de 15 de Setembro de 1645. Estava mais uma vez a caminho da Índia, vindo a falecer em data incerta na “Roma do Oriente”».

No testamento, guardado no Arquivo Histórico da Santa Casa da Misericórdia de Santarém, são-nos fornecidos valiosos detalhes que comprovam «a enorme dimensão mecenática do padre Mourato». O próprio D. João IV – que Mourato vigorosamente apoiava – foi incluído no rol dos ofertados. A esse respeito leia-se a seguinte passagem do testamento: “…duas alcatifas grandes ricamente bordadas de ouro e seda sobre veludo nácar muito rico forradas de damasco vermelho que diz lhe custaram muita prata e que lhe levaram mais de 2 anos contínuos em faze-las e que era a melhor obra que jamais tinha saído da China…”. Serrão considera essa referência «importantíssima para a História da Arte luso-chinesa», já que demonstra a facilidade de acesso por parte do padre Mourato «às oficinas dos melhores bordadores chineses». O facto constata ainda a excelência da sua relação com «o rei Restaurador e as suas fidelidades ao novo regime político-dinástico».

Continuando, o reputado professor cita Maria João Pacheco Ferreira, «grande especialista em têxteis asiáticos», que nos alerta para a existência de uma riquíssima armação têxtil chinesa entre os bens da colecção real na segunda metade do século XVII. Ao que consta, essa «armação de colchas» foi por diversas vezes exposta no Paço Real «com pompa e circunstância», tendo merecido os maiores elogios, da parte do jornal Mercúrio Portuguez, nas festas do casamento de D. Afonso VI com D. Maria Francisca de Sabóia em 1666, e, três anos depois, nas do baptismo da primeira filha de D. Pedro, deste feita pela pena do escritor Diego Villegas. Vítor Serrão considera que é «bem provável que se tratasse da oferta desses têxteis de Macau custeados pelo padre Mourato como oferta pessoal ao primeiro dos Bragança e que vêm tão minuciosamente descritos no testamento do padre escalabitano».

Joaquim Magalhães de Castro

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